Thursday, August 5, 2010

Where the Wild Things Are

Em fins de julho de 2010 assisti a “Onde Vivem os Monstros” (Where the Wild Things Are, janeiro/2010). Recomendei a minha irmã, que assistiu ao dito cujo e detestou, clamando não haver entendido muito bem do que se tratava. Ruminei, ruminei, e decidi cuspir um pouco dos meus pensamentos a respeito do filme.

“Where the Wild Things Are” foi baseado no livro infantil homônimo, escrito por Maurice Sendak. Apesar de algumas diferenças (a maioria delas, atos necessários, a fim de converter o enredo literário em roteiro hollywoodiano), o filme não se desgarra da trama do livro. Max, um garotinho solitário, é rechaçado pela irmã, que prefere a companhia de uns outros garotos, maiores, mais velhos e mais adolescidos. Tampouco tem pai: a mãe, que parece trabalhar o dia todo, tem um namorado. De forma que a criança dentro de Max toma proporções maiores do que o normal.

Claramente, os devaneios de Max são uma tentativa de combater a realidade opressora. O menino é altamente criativo, uma obrigatoriedade ante a desolação do mundo real. Na ausência de amigos, Max os cria; e em sua mente, tudo é vida, contrapondo-se ao mundo de gelo e isolamento do exterior. Sob o manto protetor que se encontram as crianças, tendemos a acreditar que Max simplesmente nutre sua habilidade no jogo da criação - atividade inofensiva que deve ser incentivada sempre que possível. Mas até que ponto tal atividade é realmente inócua?

Partamos para uma rápida análise. O garoto, irado pela rejeição da irmã em brincar consigo, e também por não salvá-lo da agressão de meninos mais fortes, transforma o quarto da coitada em chiqueiro. De neve. E água. Quebra a moldura emadeirada de uma foto jacente sobre sua escrivaninha e apronta outras diabruras. Depois de limpa a bagunça, perde o controle ao ver que sua mãe não lhe dá a devida atenção. Porta-se conforme a imaturidade usual de crianças, sobe na mesa e desafia o mundo exterior de forma interessante: “I will eat you!” (Vou te comer!).

Interessante porque assim que sua mãe o põe de castigo e o garoto foge de casa, indo parar nos confins da Terra, termina entrando num mundo de magia povoado por estranhas criaturas, imprevisíveis e até agressivas. O símbolo de sua intempérie? Muito similarmente, gritam para o menino: “I will eat you!”

É um tiro no escuro, mas eu considero os monstrinhos como um espelho do mundo real. Vivem na cabeça de Max, o que de certa forma se torna autoexplicativo: ora, o mundo em que Max está inserido é exatamente esse. Aí está como o garoto vê a realidade em que se insere: uma terra estranha, de plagas inexploradas, mistérios insondáveis, com criaturas que, se não domadas por uma força de vontade descomunal (daí seu grito para que ficassem quietos, logo após encontrá-las), vão comê-lo. A construção é fantasiosa, no mundo interior de Max, mas em última análise é o reflexo da forma como ele enxerga o mundo exterior. O perigo constante em ser comido pelas criaturas reflete justamente a realidade cruel que nos tolhe a todos, castradora, que nos atropela impiedosamente e - de forma real ou figurada - nos mata. Em poucas palavras, a realidade, o mundo, é o pai castrador freudiano. E “Onde Vivem os Monstros” é uma foto do momento em que Max desperta para o entendimento de que viver é justamente esse perigo.

A vida é assim. Dura. Inexorável. Ou encontramos uma forma de nos adaptarmos a ela, descobrindo um modo de lidarmos com nossas frustrações, ou então surtamos. A forma como Max lida com a realidade é abrigando-se nas entranhas de sua própria imaginação. Entretanto, aí está o paradoxo, pois sua imaginação nada mais é que um reflexo da realidade mesma que tenta evitar. Dentro e fora, portanto, encontra-se face a face com a necessidade imponente de cruzar a linha da infância, despertando para uma nova ordem. E não é redundante lembrar que essa linha de separação é problemática: uma verdadeira tempestade, um mar revolto e indomável, justamente aquele pelo qual o protagonista tem que passar até chegar no mundo das feras.

As feras que povoam a realidade são assim: têm dentes e garras afiadas, como dito repetidamente pela fala dos atores no filme. Mas a beleza deste filme está no fato de que, justamente, para este que vos escreve, o que a narrativa conta, na verdade, é a estória de como uma criança deixa a infância e adentra a próxima fase da vida. Pouco a pouco, Max descobre que não adianta destruir a própria casa. No início, juntara-se ao grandão Carol, que (não por mera coincidência) lembrava justamente o próprio garoto. Tudo o que Max sabia fazer era revoltar-se contra o que era seu - sua irmã, sua mãe, sua família (e aqui temos até uma pequena ponte com “American History X”, no momento em que Murray, interpretado por Elliott Gould, diz a Derek, interpretado por Edward Norton: “what are you doing? They are your family.”). Já no fim do filme, Max resiste à tentação da fúria cega e entende que derrubar sua própria casa não é a solução para se lidar com as agruras da vida. Para lidar com um mundo que tolhe e castra, a solução de Max (ou Carol) era tolher e castrar de volta. Por isso “I will eat you”, seja para a mãe ou até para si mesmo.

Somente através de uma série de experiências nessa terra estranha é que Max se liberta de suas tendências autodestrutivas e consegue enxergar algo de muito sério no relacionamento deficiente de Carol e Claire. De fato, Max gradualmente termina por sentir o baque ao constatar, horrorizado, o imenso perigo de suas atitudes: alienar aqueles a quem mais ama. É o que transparece na forma pela qual Carol termina por alienar Claire, justamente aquela que mais ama.

Uma constatação assim, terrível mas esclarecedora, coloca Max nos eixos. Eu costumo chamar atitudes destrutivas como a de Max de “complexo de Shiva”. Referindo-me, é claro, ao deus indiano, que a tudo destrói para, depois, poder reconstruir. É um tipo de renascimento. O problema é que a destruição que visa o renascimento é um recurso extremamente delicado, de que só devemos lançar mão em momentos muito particulares e, ao mesmo tempo, de posse de um esclarescimento tal que permita fazê-lo de sorte que o resultado seja melhor que a situação anterior. A tendência destrutiva de Max é o símbolo da atitude desgovernada daqueles que se apropriam do “complexo de Shiva” (termo meu) para cumprir seus desejos sem qualquer ideia de iluminação. É um processo perigosíssimo, para si e para os outros, pois em escala menor pode-se implodir a própria vida, alienando tudo e todos; e em escala maior corremos o risco de testemunhar crimes contra a humanidade da mais alta perversidade (se você pensou em Hitler, é por aí; existem muitos outros exemplos, como o do massacre dos curdos, o do império otomano e por aí vai).

Para terminar este pequeno artigo, trago uma observação que julgo interessante: Max a princípio é libertado por sua imaginação. Depois, parece dela se tornar escravo. E, no fim das contas, parece por ela libertar-se novamente, desta feita com efeitos mais saudáveis. É um ciclo curioso, mas não de todo original. Já o diria Bruce Lee, sobre seus estudos em artes marciais: “para mim, no começo, um soco era só um soco. Depois, um soco não era só um soco. E, por fim, um soco virou apenas um soco.”

1 comment:

  1. É sempre bom conseguir sintetizar os problemas como contos de fadas, afinal contos de fadas tem sempre :" E foram felizes para sempre." Mas o que deixamos de perceber é que não foi a vida, ou o destino que os deixaram felizes para sempre, sim os próprios personagens. O filme (Onde vivem os monstros) mostra isso, como uma viaje no seu interior pode ser algo bom ou ruim, e cabe a nós escolher para qual lado olhar... e por mais que digamos que tudo no final acaba bem , todo mocinho e mocinha sofre um bucado antes do final feliz. Enfrentar nossos monstros é fácil, afinal são nossos, o problema é enfrentar os monstros externos,que são os quais mais nos machucam. Gosto de ser ingênua e infantil em acreditar e admirar nas coisas boas da vida, como o Pequeno Principe, e Polianna. Os monstros só aumenta e ficam fortes quando alimentamos eles, como qualquer problema. Prefiro deixar meus mostros morrerem de fome, assim fica mais fácil destrui-los.

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