Saturday, April 21, 2012

Habemus Papam

Habemus Papam - O Filme
Filme controverso esse Habemus Papam, provavelmente encaixável naquela categoria de "ame ou odeie". O diretor Nanni Moretti conseguiu construir um modelo que nasce de uma ideia cheia de promessas e termina num quadro de estupefação. Enquanto os créditos rolam, ao final do filme, o espectador é levado a se perguntar: "o que foi isso que acabei de ver?". O filme é bom? Ou ruim? Qual o significado de sua cena de fechamento?

A divergência de opiniões é irremediável, tanto porque cada um é um, mas também pelo que já se dizia ali no primeiro parágrafo, quanto à categoria particular a que pertence Habemus Papam. Façamos aqui uma breve análise filosófica, destacando alguns pontos controversos -- mas interessantes --, e oferecendo uma visão particular sobre o significado da cena última.

Moretti segue o padrão já estabelecido em outros filmes seus, em que tanto dirige como também interpreta. Geralmente, seus papeis são de ator principal, mas em Habemus Papam, esse papel fica relegado ao de coadjuvante -- de simbologia controvertida, vá lá, mas, ainda assim, de segundo plano, já que quem toma a dianteira é, mesmo, o novo Papa.

O filme tem traços marcantes. Seu início vem recheado de enxertos com filmografia de momentos reais da morte do papa João Paulo II, entrecortado com a visão de Moretti sobre o conclave papal que se segue. Tratam-se de momentos de grandes sacadas, tanto pela força de determinadas cenas quanto pela sutileza do humor árido empregado. Durante o conclave, por exemplo, o diretor oferece um apuradíssimo lance de comédia ao mostrar os cardinais tratando a votação do novo papa como se fosse um jogo de bingo. Certo cardinal chega a tentar "pescar" o que o colega está escrevendo. Ao mesmo tempo, entretanto, é importante notar que, no desenrolar dessa superfície bem-humorada, algo de muito sério vem se desenvolvendo nas profundezas desse universo do Vaticano. Qual seja: nos recônditos de cada cardeal, pesa o fardo abafadiço do manto papal. Simplesmente ninguém o quer, conscientes do efeito esmagador que o pontificado teria sobre suas vidas.

A hora da verdade
Esse misto de bom humor superficial mesclado com um âmago opressivo é marca registrada de Habemus Papam: o filme, no final das contas, é uma incerteza entre o drama e a comédia -- ou, talvez mais acertadamente, os dois --, entre a sátira e um retrato solidário de um homem em crise. Aliás, fica muitíssimo claro que o propósito de Moretti aqui é despir o papa da indumentária eclesiástica, deixando que figure o ser humano por detrás da persona que lidera a fé do catolicismo. O objetivo é colocar em voga não o papa, mas o homem. E daí surgem as perguntas: como Moretti propõe atacar esse tema tão interessante? De que meios ele se utiliza para chegar a esse fim? E, completado o filme, ele obteve sucesso no empreendimento?

Quanto à primeira pergunta, Moretti ataca o tema com a crise existencial de Melville, o novo papa escolhido. Daí aos meios escolhidos para chegar a esse fim é que testemunhamos a concepção de Moretti sobre o significado do homem em conflito e de seu posicionamento acerca da fraqueza humana. Havendo jogado o processo de seleção papal no limbo, após fugir do púlpito, Melville, interpretado com uma sensibilidade fúnebre pelo frances Michel Piccoli, se recolhe até ser tratado pelo melhor psicanalista das redondezas -- e o psicanalista é interpretado pelo próprio Moretti.

A sessão  de psicanálise
Aqui, Moretti caminha com tremendo sucesso sobre escrita e atuações de solidez palpáveis, descrevendo a tentativa do psicanalista em adentrar a psique de Melville, mas sendo tolhido tanto pelo bafafá dos cardinais quanto pelos limites formais de uma sessão com o papa -- não se pode falar sobre a mãe do papa, nem sobre desejos frustrados, nem sobre sua infância, nem sobre seus sonhos. É exatamente este ponto que representa o momento crucial do filme. Uma boa narrativa precisa de uma boa problemática; um obstáculo grande o bastante para levar o personagem de um estado inicial a um estado posterior de aprendizagem e realização. 

Tomando-se como parâmetro o búlgaro Tzvetan Todorov, por exemplo, toda narrativa é a passagem de uma situação de equilíbrio, passando por um período de desequilíbrio, até uma nova situação de equilíbrio. Yves Reuter, com seu modelo quinário de narrativa, persegue o mesmo raciocínio: em toda estória, há um estado inicial duradouro, que é então modificado por uma força perturbadora e desencadeia uma dinâmica (um encadeamento de ações), que, por sua vez, resulta numa força equilibradora -- chegando-se finalmente a um estado final duradouro. Tecnicamente, Yves Reuter dá a esse processo o nome de narrativa mínima, enquanto Todorov usa o termo intriga mínima completa. Já o professor Joseph Campbell fala exatamente o mesmo quando discorre sobre a construção do mito. No fim, apesar dos nomes diferentes, todos encontram a mesma regra: uma boa trama tem um começo equilibrado, um meio desequilibrado e um final novamente equilibrado, em que o processo da jornada (o que está entre o início e o final, ou seja, entre os dois pontos de equilíbrio) faz o personagem crescer, mudar, aprender e evoluir. É por essa evolução que ele consegue ultrapassar os obstáculos e obter sucesso no final.

Este "final" não precisa ser necessariamente "melhor", no sentido de mais justo ou mais belo. Pode ser uma mudança para pior, bastando que haja uma jornada capaz de modificar o personagem. Uma mudança para melhor implica num final feliz, recurso bastante usado por Hollywood. Uma mudança para pior implica, ao menos em princípio, na forma mais pura de drama -- aquela em que se descreve uma situação de risco, cujo resultado seja a não-consecução de um desejo pretendido ou da falha, ou incapacidade, em alcançar determinado objetivo. É o anti-Hollywood, o fim verdadeiramente dramático, oposto ao final feliz.

No caso de Habemus Papam, todas as possíveis ramificações da trama principal se concentram sobre um nexo crucial: o deste momento em que o personagem principal se encontra frente a uma decisão estrutural basilar, de consequêcias exponenciais sobre todo o decurso da obra. Quando o papa se coloca diante do psicanalista, em princípio o espectador é colocado defronte uma situação em que imagina um evento à lá O Discurso do Rei. Ou seja, é um encontro que promete! Parece ser o tipo de conflito que prenuncia um encontro entre um grande homem e aquele que lhe guiará pelas sendas da incerteza e da adversidade; uma relação de tal significância que um personagem definirá o outro, através da qual ambos perfarão uma profunda e verdadeira jornada emocional que os cambiará a ambos para sempre.

A partida de vôlei na Santa Sé
No entanto, Moretti provoca uma guinada monumental no andamento do enredo. Ao invés de investir no confronto entre psicanálise e sacerdócio, ele faz com que o papa adentre a metrópole romana em situação de refugiado. Primeiro, buscando uma solução junto à ex-mulher do psicanalista. Depois, largado ao agito da vida como ela é, vagando pelas realidades do cotidiano, e ao mesmo tempo imerso em longa noite de trevas da alma, travando batalha com suas dúvidas por si só. O analista permanece no Vaticano, jogando cartas com os cardeais e organizando um torneio de vôlei. É aí que, comos dois personagens apartados, o filme supostamente começa a perder o fio da meada, entrecortando cenas sem qualquer conexão aparente e, consequentemente, perdendo o foco da narrativa.

Essa longa fase de desenvolvimento é a mais importante, pois é ela que trará a evolução do personagem. É ela que levará à conclusão final da trama. Sua análise, portanto, dirá muita coisa sobre a essência do filme.

Em primeiro lugar, é uma jornada lenta. O novo papa ruma aparentemente a esmo, passando por vários ambientes e situações, mas aprende com cada uma delas. Trata-se aqui de uma alma em conflito, até depressiva, passando por vários cenários -- passagem esta que mostra cada vez mais o caráter pensativo e humano por detrás da pessoa do papa. De fato, há algo de Cristo no modo como as pessoas se portam ao seu redor, particularmente na cena em que monologa em voz alta suas dúvidas dentro do ônibus.

Assim, esse desenvolvimento "cortado" e ululante deságua justamente na cena final, de rejeição do cargo papal. Mas por quê? O que o novo papa teria aprendido em sua jornada, e por que essa escolha?

O decorrer do filme deixa claro que o objetivo de Moretti nunca foi trazer adiante o conflito entre psicanálise e eclésia. Tanto que pouco importa a definição de "déficit de atenção" que aparece no filme (diz o papa, a certa altura, "seja lá o que for isso"). Apesar da isca jogada no começo do filme entre psicanalista e papa, a estória verdadeiramente retratada no filme é a da jornada de alguém humano, que mesmo estando no final da vida (sem lhe restar muito tempo), ainda assim se defronta com um sem número de dúvidas... perguntas para as quais não encontra respostas. O filme mostra a busca espiritual não de um papa, mas da consequência humana frente a um pesadíssimo ofício religioso. Consequência humana, frise-se. Justamente daí Moretti não se ter prendido à batalha da psicanálise contra a igreja; daí ele não se haver aventurado em temas mais picantes para a religião Católica.

Aliás, esse é um ponto forte de Habemus Papam: seria muito fácil aderir à onda moderna de ataque ao catolicismo -- com todos os abusos de padres que têm acontecido, um outro diretor qualquer se refestelaria no assunto. Não Moretti. Ele evita o modismo e enfrenta outros questionamentos bastante diferentes. Aqui o encargo papal é apenas a porta de entrada que leva a um profundo autoquestionamento (este sim, a peça central do filme). Ou seja, poderia ser qualquer coisa; mas Moretti escolhe o papado como estopim da busca e do auquestionamento pessoal.

A partir daí, vemos o desenrolar da estória de um homem em conflito, em depressão, perigosamente a ponto de desaparecer por causa da persona papal que deve encarnar, e que, consequentemente, na briga contra isso, despe-se do poder e dessa imensa responsabilidade. Inclusive, é através dessa rejeição que Moretti se usa do personagem do Papa para dizer que é possível, sim, se desencumbir do poder. É através desse personagem que Moretti narra que o conhecimento dos próprios limites não é um sinal de fraqueza, mas de força.

O homem em conflito por detrás do Papa
Finalmente, Moretti se pôs numa posição difícil. Se terminasse o filme com a simples volta do papa ao poder, reconhecendo seu cargo e assumindo as vestes sagradas, cairia na mesma fórmula Hollywoodiana repetida à exaustão que todo filme europeu que se preza tenta evitar. Se terminasse com a recusa do homem em aceitar o papado, então haveria o risco de deixar os espectadores insatisfeitos. Afinal, não é esse o motivo da jornada? Não é esse o motivo do desequilíbrio? Para que, no fim das contas, consigamos evoluir, tornarmo-nos mais fortes, ultrapassar os obstáculos e conquistar nossos objetivos?

Sim e não. Porque isso não necessariamente se dá por meio da fórmula Hollywoodiana de final feliz, e por isso mesmo dediquei um parágrafo todo a Todorov, Reuter e Campbell. A jornada do papa o deixou mais forte. Porém, a visão de Moretti é a de que, precisamente, (re)conhecer as próprias limitações são não um sinal de fraqueza, mas de força. E a rejeição do assento máximo da fé católica significou justamente isso: a mostra de que aquele homem é forte o bastante para admitir que não é o mais adequado para o cargo. E aí jaz o paradoxo da narração: pois aquele que é forte o bastante seria, justamente, o mais adequado para o cargo. E no entanto, ao mesmo tempo, não o é.

Moretti tem nas mãos um projeto ambicioso, que peca muitas vezes na construção narrativa dessa jornada. Por isso, esse é um filme de certa forma desnivelado, com grandes objetivos e uma consecução por vezes um pouco desajeitada; mas com um final bombástico que deixa ao espectador a parte mais difícil: a de refletir sobre o significado mais íntimo da obra. Mas não poderia ser diferente.

A força em dizer não.

Thursday, August 5, 2010

Where the Wild Things Are

Em fins de julho de 2010 assisti a “Onde Vivem os Monstros” (Where the Wild Things Are, janeiro/2010). Recomendei a minha irmã, que assistiu ao dito cujo e detestou, clamando não haver entendido muito bem do que se tratava. Ruminei, ruminei, e decidi cuspir um pouco dos meus pensamentos a respeito do filme.

“Where the Wild Things Are” foi baseado no livro infantil homônimo, escrito por Maurice Sendak. Apesar de algumas diferenças (a maioria delas, atos necessários, a fim de converter o enredo literário em roteiro hollywoodiano), o filme não se desgarra da trama do livro. Max, um garotinho solitário, é rechaçado pela irmã, que prefere a companhia de uns outros garotos, maiores, mais velhos e mais adolescidos. Tampouco tem pai: a mãe, que parece trabalhar o dia todo, tem um namorado. De forma que a criança dentro de Max toma proporções maiores do que o normal.

Claramente, os devaneios de Max são uma tentativa de combater a realidade opressora. O menino é altamente criativo, uma obrigatoriedade ante a desolação do mundo real. Na ausência de amigos, Max os cria; e em sua mente, tudo é vida, contrapondo-se ao mundo de gelo e isolamento do exterior. Sob o manto protetor que se encontram as crianças, tendemos a acreditar que Max simplesmente nutre sua habilidade no jogo da criação - atividade inofensiva que deve ser incentivada sempre que possível. Mas até que ponto tal atividade é realmente inócua?

Partamos para uma rápida análise. O garoto, irado pela rejeição da irmã em brincar consigo, e também por não salvá-lo da agressão de meninos mais fortes, transforma o quarto da coitada em chiqueiro. De neve. E água. Quebra a moldura emadeirada de uma foto jacente sobre sua escrivaninha e apronta outras diabruras. Depois de limpa a bagunça, perde o controle ao ver que sua mãe não lhe dá a devida atenção. Porta-se conforme a imaturidade usual de crianças, sobe na mesa e desafia o mundo exterior de forma interessante: “I will eat you!” (Vou te comer!).

Interessante porque assim que sua mãe o põe de castigo e o garoto foge de casa, indo parar nos confins da Terra, termina entrando num mundo de magia povoado por estranhas criaturas, imprevisíveis e até agressivas. O símbolo de sua intempérie? Muito similarmente, gritam para o menino: “I will eat you!”

É um tiro no escuro, mas eu considero os monstrinhos como um espelho do mundo real. Vivem na cabeça de Max, o que de certa forma se torna autoexplicativo: ora, o mundo em que Max está inserido é exatamente esse. Aí está como o garoto vê a realidade em que se insere: uma terra estranha, de plagas inexploradas, mistérios insondáveis, com criaturas que, se não domadas por uma força de vontade descomunal (daí seu grito para que ficassem quietos, logo após encontrá-las), vão comê-lo. A construção é fantasiosa, no mundo interior de Max, mas em última análise é o reflexo da forma como ele enxerga o mundo exterior. O perigo constante em ser comido pelas criaturas reflete justamente a realidade cruel que nos tolhe a todos, castradora, que nos atropela impiedosamente e - de forma real ou figurada - nos mata. Em poucas palavras, a realidade, o mundo, é o pai castrador freudiano. E “Onde Vivem os Monstros” é uma foto do momento em que Max desperta para o entendimento de que viver é justamente esse perigo.

A vida é assim. Dura. Inexorável. Ou encontramos uma forma de nos adaptarmos a ela, descobrindo um modo de lidarmos com nossas frustrações, ou então surtamos. A forma como Max lida com a realidade é abrigando-se nas entranhas de sua própria imaginação. Entretanto, aí está o paradoxo, pois sua imaginação nada mais é que um reflexo da realidade mesma que tenta evitar. Dentro e fora, portanto, encontra-se face a face com a necessidade imponente de cruzar a linha da infância, despertando para uma nova ordem. E não é redundante lembrar que essa linha de separação é problemática: uma verdadeira tempestade, um mar revolto e indomável, justamente aquele pelo qual o protagonista tem que passar até chegar no mundo das feras.

As feras que povoam a realidade são assim: têm dentes e garras afiadas, como dito repetidamente pela fala dos atores no filme. Mas a beleza deste filme está no fato de que, justamente, para este que vos escreve, o que a narrativa conta, na verdade, é a estória de como uma criança deixa a infância e adentra a próxima fase da vida. Pouco a pouco, Max descobre que não adianta destruir a própria casa. No início, juntara-se ao grandão Carol, que (não por mera coincidência) lembrava justamente o próprio garoto. Tudo o que Max sabia fazer era revoltar-se contra o que era seu - sua irmã, sua mãe, sua família (e aqui temos até uma pequena ponte com “American History X”, no momento em que Murray, interpretado por Elliott Gould, diz a Derek, interpretado por Edward Norton: “what are you doing? They are your family.”). Já no fim do filme, Max resiste à tentação da fúria cega e entende que derrubar sua própria casa não é a solução para se lidar com as agruras da vida. Para lidar com um mundo que tolhe e castra, a solução de Max (ou Carol) era tolher e castrar de volta. Por isso “I will eat you”, seja para a mãe ou até para si mesmo.

Somente através de uma série de experiências nessa terra estranha é que Max se liberta de suas tendências autodestrutivas e consegue enxergar algo de muito sério no relacionamento deficiente de Carol e Claire. De fato, Max gradualmente termina por sentir o baque ao constatar, horrorizado, o imenso perigo de suas atitudes: alienar aqueles a quem mais ama. É o que transparece na forma pela qual Carol termina por alienar Claire, justamente aquela que mais ama.

Uma constatação assim, terrível mas esclarecedora, coloca Max nos eixos. Eu costumo chamar atitudes destrutivas como a de Max de “complexo de Shiva”. Referindo-me, é claro, ao deus indiano, que a tudo destrói para, depois, poder reconstruir. É um tipo de renascimento. O problema é que a destruição que visa o renascimento é um recurso extremamente delicado, de que só devemos lançar mão em momentos muito particulares e, ao mesmo tempo, de posse de um esclarescimento tal que permita fazê-lo de sorte que o resultado seja melhor que a situação anterior. A tendência destrutiva de Max é o símbolo da atitude desgovernada daqueles que se apropriam do “complexo de Shiva” (termo meu) para cumprir seus desejos sem qualquer ideia de iluminação. É um processo perigosíssimo, para si e para os outros, pois em escala menor pode-se implodir a própria vida, alienando tudo e todos; e em escala maior corremos o risco de testemunhar crimes contra a humanidade da mais alta perversidade (se você pensou em Hitler, é por aí; existem muitos outros exemplos, como o do massacre dos curdos, o do império otomano e por aí vai).

Para terminar este pequeno artigo, trago uma observação que julgo interessante: Max a princípio é libertado por sua imaginação. Depois, parece dela se tornar escravo. E, no fim das contas, parece por ela libertar-se novamente, desta feita com efeitos mais saudáveis. É um ciclo curioso, mas não de todo original. Já o diria Bruce Lee, sobre seus estudos em artes marciais: “para mim, no começo, um soco era só um soco. Depois, um soco não era só um soco. E, por fim, um soco virou apenas um soco.”

A quantas anda a qualidade do jornalismo?

Depois de ler uma notícia na Veja Online sobre a problemática do iPhone, comentado pela atriz Whoopi Goldberg em seu talkshow e pela Nokia (reitero: é o que diz a VEJA), fiquei ponderando sobre a qualidade das informações que os veículos midiáticos do globo passam a nós leitores.

Vejamos bem: ao dizer que a Nokia alfinetara a Apple, a Veja não informa absolutamente nada sobre como isso ocorreu, nem onde, nem quando (“logo após o pronunciamento da Apple” não é lá muito exato), nem como, nem por quem. E fechou com frase de impacto: ’ “É o que se espera de uma empresa empenhada em conectar pessoas”, disse. ’ Quem disse? A Nokia. Mas a não ser que a vida seja um episódio de Futurama, empresas não falam; têm um porta-voz. Esse tal indivíduo, a Veja não diz quem é.

Nem está muito preocupada. Outros veículos têm feito o mesmo, com muito menos interesse em prezar pela veracidade das informações que passam. A seção de Tecnologia do Terra também publicou uma matéria narrando a conferência do dia 16 de julho de 2010 por Steve Jobbs, da Apple. “Steve Jobs”, diz a matéria, “garantiu que a atualização de software liberada esta semana resolve os problemas com a antena do smartphone”.

A falta de compromisso é brutal. Jobs não disse que a atualização resolveria os problemas com a antena do smartphone, e sim que o novo upgrade da plataforma iOS 4, numerada como iOS 4.0.1, traria a solução para o problema relativo ao engano na mostragem de barras de sinal no aparelho. O algoritmo desenvolvido pela Apple, segundo Jobs, mostrava de forma errônea o sinal realmente disponível do celular. Para isso serve a atualização do iOS - nada tendo a ver, portanto, com o problema da “antennagate”, que é de hardware.

É interessante notar que a Newsweek também publicou matéria sobre a conferência de Steve Jobs. Foi uma nota violenta contra o posicionamento de Job, atacando frontalmente o cabeça da Apple, onde, pelo menos explicitamente, o mais suave dos adjetivos atirados foi o de “arrogante”. Implicitamente lêem-se muito piores. Pelo menos em minha opinião, o posicionamento do autor da matéria acima, da Newsweek, é tendencioso e extremamente rancoroso. Mas o importante é observar que não há erros fa(c)tuais, como no caso dos exemplos que trouxe sobre as mídias brasileiras. Uma coisa é deixar claro seu ponto de vista numa matéria, colocando fatos corretos. Outra é colocar fatos errados e gerar uma ideia, na cabeça da população, sobre acontecimentos que jamais existiram. Há que se admitir que, no mínimo, há algo errado.

É preciso questionar a veracidade de informações que traz a mídia ao leitor/espectador. Há algo de podre no reino do jornalismo. Mas o mais ameaçador é que nem mesmo o sentimos. Já nos acostumamos.

Fontes:
  1. Conferência completa de Steve Jobs no dia 16 de julho de 2010 (YouTube).
  2. Steve Jobs respondendo a uma pergunta após a apresentação da conferência em 16/julho.